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Breves notícias: Os rios de Ananindeua e o projeto de abastecimento de água em Belém (Segunda metade do séc. XIX)

Texto de:

Athos Matheus da Silva Guimarães* 
Talita Almeida do Rosário**


Champney, James Wells, Vegetation of the rawed of border ,1860, Travels in the north of Brazil

Em viagem ao norte do Brasil, James Champney registrou em ilustrações o cotidiano da vida amazônica. Compondo um álbum com cenas como o banho na praia, o preparo da farinha, a lavagem de roupa e outras, revelou um elemento essencial na realidade do habitante da Amazônia, o rio. A ilustração acima é uma delas, o transporte por pequenas canoas era muito comum para diversas funcionalidades, entre elas a busca por alimento, como lembra Inglês de Souza em seu romance oitocentista História de um pescador, ambientado sobre as margens do rio Alenquer em Óbidos. No romance, o tapuio José, atravessava o rio com sua canoa até chegar ao Lago Grande, local aonde se pescava pirarucu assim quando chegava o verão, o que no livro é chamado de Salga. De modo como também era sobre o rio aonde se desenvolvia a trama entre José e Joaninha com os momentos que ele o navegava a encontro de sua pretendente que por vezes o esperava sobre as suas margens no sítio onde morava. Assim nos revelando um namoro amazônico.

Compreendemos então que essa não era uma realidade distante na vida de quem habitava Ananindeua durante o século XIX. Uma região amazônica com vegetação presente por suas extensões e compreendida por rios, os quais assumiram diversos papéis ao longo do período. Bem lembra as autoras Souza, Ricci e Barriga (2015, p.162) que durante a cabanagem refugiavam-se muitos rebeldes nos arrabaldes de Belém. Citando a fala do militar Andrea, contam que após o levante de 1835 haviam alguns poucos cabanos em Chapéu Virado na ilha de Mosqueiro e em colares até a Baia do Sol, enquanto que subindo o rio Maguari tinham-se grupos de cabanos mais ou menos numerosos que iam até as cabeceiras do rio Caraparu (o que corresponde hoje às terras de Santa Izabel). Logo, o rio Maguari e Caraparu foram cruciais para a manutenção do movimento cabano, uma vez que servia a eles como um local estratégico de fuga. Para além dessa relação com os rios do espaço que hoje entendemos de município de Ananindeua e suas proximidades, encontramos outras no séc. XIX que envolviam não só os seus moradores, mas também a cidade de Belém.

Em 1878, O jornal do Pará traz em nota os resultados do trabalho do engenheiro Guilherme Francesco Cruz sobre as fontes escolhidas para o abastecimento de água em Belém. O manancial Ananindeua era perfeito pois se encontrava mais ou menos distante de Belém, o que era fundamental para o abastecimento da água planejada, sendo transferida por aquedutos e tubos de pressão (JORNAL DO PARÁ, 1 de Março de 1878, n 50). Neste sentido, Almeida (2010, p.150-151) nos explica que a distância era um do critérios para se escolher um manancial para o abastecimento de água encanada, assim como a conservação das matas aos seus arredores. Tais fatos justificavam a boa qualidade da água, sustentando-se pura através de uma natureza não tocada pelo homem; contudo a autora afirma que mesmo relativamente distantes da cidade não estavam isentos de contaminação com elementos orgânicos.
  
O rio Ananindeua, na época conhecido por Mucajutuba era afluente do rio Bemfica e recebia às aguas do rio Marituba localizado, “subindo”, antes da estrada de Bragança. As suas águas eram descritas como límpidas e de frescura agradável ao gosto, fazendo com que fossem próprias para “coser os legumes e de dissolver sabão” sendo “bastante conhecidas e experimentadas”; e sobre a sua salubridade eram “unanimes os moradores em preconiza-las, sendo taes águas procuradas por pessoas que residem a grandes distancias” (JORNAL DO PARÁ, 1 de Março de 1878, n 50). A partir da fala do engenheiro é possível entender a dinâmica de relação que se estabelecia entre os moradores com o rio Ananindeua. Essas águas não eram uma "descoberta", haviam moradores não só da região assim como de outros locais que já a consumiam a ponto de recomenda-las; como leva a crer, servindo de indicador para se assentar o projeto. Assim como as características da qualidade da água do rio apontadas por ele, resumiam o que era ser apropriada para o abastecimento, como bem explicita, voltada para o uso doméstico.

Com as observações feitas do igarapé Ananindeua, o engenheiro decidiu analisar as suas nascentes, como o rio Marituba cujas as águas, afirmava, não “são superiores ás do Ananindeua”. O fluxo da água deste rio durante os períodos de inverno e verão influenciavam a aparência do rio Ananindeua. No verão, proporcionava ao rio Ananindeua uma excelente qualidade da água, servindo ao benefício que se fizer dela; já no inverno com as copiosas chuvas, as águas do rio Marituba ficavam agitadas. Entretanto isso não chegava afetar a pureza do manancial Ananindeua pois suas águas, explicava, não serviam apenas como reservatório mesmo se tornando abundante, mas justamente isso mantinha “a regularidade na distribuição da água" (JORNAL DO PARÁ, 1 de Março de 1878, n 50).

O rio Ananindeua não só servia para abastecimento dos moradores de suas proximidades, mas também era destinado para a navegação. Uma vez deixada livre a vasão do rio Marituba, não ficava interrompida a navegação sobre o Ananindeua, o que era para o engenheiro uma vantagem “de ordem estranha no assumpto de que me occupo, mas de muita importância”. Já um dos aspectos do rio Marituba é que ele fazia parte de posse particular. Ele antes tinha sido bem maior do que parecia ser pelo motivo de seu dono tê-lo coberto intencionalmente plantando árvores frutíferas, após o rio ser descoberto (JORNAL DO PARÁ, 1 de Março de 1878, n 50). Essa informação é muito interessante pois ela permite pensar o valor que esse rio com a sua água potável assumiu no período, levantando muitos interesses e fazendo com que o dono lançasse de estratégias para escondê-lo.

Ainda no ano de 1878, novamente O jornal do Pará publicava o relatório com os trabalhos de planejamento do engenheiro Cruz para a canalização da distribuição da água do igarapé Ananindeua. Pretendia-se distribuir a água a partir de um reservatório que seria construído na praça de São Braz. Saída do rio passaria por um condutor e logo após atravessaria a segunda ponte que existia na estrada de Bragança, existindo ali um tanque, no qual seria recolhida e recebendo águas de outra fonte. Da caixa d’água em São Braz teriam que sair dois condutores, um pela estrada de Nazareth atravessando parte do 3º e todo o 1º distrito da cidade; terminando na margem do rio Guajará em um reservatório compensador. Ainda se contava um condutor pela estrada São Jeronymo atravessando a outra parte do 3º e 2º distrito, terminando também no reservatório compensador. Assim levando a água até os domicílios (JORNAL DO PARÁ, 24 de Março de 1878, n 69). Era um projeto grandioso que demandava muitos esforços materiais e financeiros, mas também acabaria afetando a paisagem natural de Ananindeua.

Por isso, como um dos impactos foi a ocupação das áreas desses rios, uma vez que se queria facilitar o acesso a eles não só através de encanamento, mas também de pontes. Neste sentido, foram construídas uma sobre cada rio, no Ananindeua e Marituba. Mesmo concluídas ainda se buscava aterrar o espaço compreendido entre elas e também abrindo valas laterais para servirem como esgotos pluviais (JORNAL DO PARÁ, 7 de Dezembro de 1869, n 278). Deste modo, os habitantes dessa região no séc. XIX que nos dias atuais identificamos por Ananindeua e proximidade tinham um cotidiano marcado com a utilização dos rios para navegação e consumo, por esse motivo encontramos casas em suas extensões como no “rio de Bemfica”, no qual sobre suas margens em 1859 possuía um sítio com escravos cujas terras pertenciam à Cesgirmanda Francisca da Silva, herdeira do falecido José Rodrigues dos Santos[i]. Da mesma maneira como em Belém ,que mostrava interesses em fincar um plano para explora-los e domina-los, garantindo a sobrevivência de sua região e revelando outras percepções de usos sobre suas águas. À vista disso, essa breve e inicial pesquisa procurou demonstrar como se estabeleceu a relação entre esses sujeitos e a natureza local, construindo uma face da História da Amazônia e de Ananindeua.

Conclusão
Ao observar o texto percebemos que as cercanias de Belém eram tão ocupadas quanto o centro. Esta afirmação não está pensando em quantidade numérica de habitantes, pelo contrário, a afirmação é direcionada às várias experiências desenvolvidas dentro e fora da floresta. Expõe uma preocupação em torno do abastecimento de Belém à procura de alguns mananciais a quilômetros da região; os rios Ananindeua e Marituba são selecionados e estudados pelo engenheiro Guilherme Francisco Cruz. Os periódicos retratam o processo de análise dos mananciais com a possibilidade de utilização para o abastecimento dos moradores belenenses. Percebe-se nas fontes que esses mananciais não estavam submetidos exclusivamente ao abastecimento, os moradores da região próxima aos rios também usufruíram de diversas formas desta água, tanto para seus afazeres domésticos quanto para navegação.

Esse é um período interessante para História regional, principalmente para localidade no que é hoje o município de Ananindeua. Porém é pouco trabalhado pela historiografia paraense. Demasiadamente a história do Pará é voltada para Belém e, de certa forma, esquece as cercanias que um dia foram suas. Ananindeua possui várias possibilidades para o desenvolvimento de pesquisas, como por exemplo o processo de utilização dos rios Ananindeua e Marituba para o abastecimento de água na cidade de Belém do século XIX e sobre a sociedade que ocupava as cercanias desta região. Fontes sobre Ananindeua estão, em algumas vezes, disponibilizadas em hemerotecas digitais e de fácil acesso. Então porquê não há tantas pesquisas históricas sobre Ananindeua?

Uma possível resposta é que Ananindeua não representa um centro, mas uma cercania de Belém e por muito tempo não atraia os olhares dos historiadores e historiadoras. Já se desenvolveu intensas pesquisas sobre a região de Belém (Centro), que dirá a Belle Epoque. Enquanto que o município de Ananindeua, e dentre outras regiões, ainda é colocada à sombra da capital. O desenvolvimento de pesquisas sobre a região Ananindeuense pode colaborar com o ensino local, resultando em uma, ou várias, identidades de Ananindeua e também memórias do local; saindo do espectro da capital. As afirmações postas no texto não tem o intuito de criar uma aversão à Belém, muito pelo contrário o objetivo é estimular o desenvolvimento de pesquisas historiográficas sobre Ananindeua, pois ela tem muito a contribuir sobre a História da Amazônia.

Referências
*é graduando de licenciatura em História na Universidade Federal do Pará-Campus Ananindeua 
** é graduanda de licenciatura em História na Universidade Federal do Pará- Campus Ananindeua

ALMEIDA, Conceição Maria Rocha de. As águas e a cidade de Belém do Pará: história, natureza e cultura material no século XIX, Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Programa de Pós-graduação em História, São Paulo, 2010.p.145-160. Download .
  
BARRIGA, Letícia Pereira; SOUZA, Sueny Diana Oliveira; RICCI, Magda Maria de Oliveira. Entre tropas, armas e guerra: as ações militares na Cabanagem. In: Cardoso, lírio, BASTOS, Carlos Augusto, NOGUEIRA, Shirley Nogueira. História militar da Amazônia: guerra, militares e sociedade (séculos XVII-XIX).. 1º Edição. Curitiba, PR: Editora CVR ,2015

CHAMPNEY, James Wells. Travels in the north of Brazil. [S.l.: s.n.], 1860. 1 Album (32 pranchas). Disponível em: <http://acervo.bndigital.bn.br/sophia/index.asp?codigo_sophia=22030>. Acesso em: 8 dez. 2018.

DE SOUZA, Herculano Marcos Inglês. Historia de um pescador:(cenas da vida do Amazonas). Ed. Univ.. Federal do Pará, 2007.

Jornais:
Hemeroteca digital –Biblioteca nacional Acesse o link .

[i] Inventario pos mortem. Inventariado José Rodrigues dos Santos. Acervo Centro de Memória da Amazônia. Tribunal do Estado do Pará, 4º vara civil-Cartório Leão. Estante 02, prateleira número 05. Anos 1818/1819/1856/1857/1858/1859

Comentários

  1. Capítulo importantíssimo da História nacional é a história de Ananindeua. Parabéns!

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